Feito para fãs compulsivos, Bandersnatch é uma obra irritantemente fantástica e intrigante.
Para fins de pesquisa antes de escrever este artigo, todas as menções à palavra “bandersnatch” foram consideradas e estudadas. O resultado foi curioso: literatura, televisão, música, games, e até mesmo a ciência retornou à primeira menção, por Lewis Carroll, que nomeou de Bandersnatch uma criatura violenta e selvagem em seu poema A Caça ao Snark (1876), cuja narrativa também tornou-se peça teatral.
É interessante observar que tudo culmina nessa criatura, principalmente após uma análise minuciosa do mais recente filme Original Netflix, cujo título leva, justamente, o nome de Bandersnatch, embora a criatura tenha sido chamada PAX neste novo universo.
Mais uma vez, voltamos à pesquisa. Pax faz parte da mitologia romana, considerada a deusa da paz durante o governo de Augusto. Agora a pergunta: por que a tal besta selvagem em Bandersnatch leva o nome de uma deusa da paz?
Se continuarmos a análise pelo viés greco-romano, identificamos mais algumas referências. Primeiro, à busca pelo autoconhecimento filosófico, com aquelas perguntas clássicas de “quem sou eu?”, “de onde eu vim?” e “para onde eu vou?”. Depois, o confronto entre criatura e criador, abordado com maior profundidade em O Mundo de Sofia (1991), em que a protagonista é libertada pelo escritor do livro em que ela é personagem, trazendo certa confusão entre o que é real e o que é ficcional. Sofia existe? O escritor é Deus? O que é a verdade?
Agora, mesclando filosofia e ciência, dá pra trazer Stephen Hawking, com as teorias dos multiversos e física quântica. Será mesmo possível existir uma mesma existência em múltiplas possibilidades, utilizando análise combinatória? Realidades com escolhas e resultados diferentes? Todas ao mesmo tempo?
A Marvel, por exemplo, utiliza o multiverso para explorar realidades alternativas em que determinados eventos aconteceram de maneiras diferentes; para trocar o gênero das personagens; ou ainda alterar as encarnações, como a personagem nascer em outro contexto familiar, financeiro, etc.
Em Bandersnatch, há uma restrição específica: todas as possibilidades combinatórias acontecem. Portanto, o recado seria: não se preocupe com suas escolhas, porque todas as possibilidades estão sendo exploradas nas realidades paralelas a esta. Neste ponto da narrativa, entendemos o que Colin quis dizer, lá na cena em que Stefan está “no buraco”. É um buraco simbólico, como se ele houvesse se perdido no meio da galáxia, numa falha temporal que causa a repetição eterna de alguns eventos. Colin diz:
— Eu te liberto. Eu te darei o conhecimento.
Na cena, ele explica a Stefan tudo sobre as PAC’s, teoria da conspiração em que o governo toma o controle da vida das pessoas. A explicação vem muito antes da cena em que Stefan descobre sobre isso no cofre. No entanto, Stefan não é muito atento aos detalhes, e muito menos nós, espectadores. Desacostumamos a olhar os sinais, os enigmas. Está tudo escrito e escolhido. Temos o falso poder da escolha, mesmo com o controle remoto. Se não tomarmos uma decisão dentro de 5 segundos, a Netflix escolhe por nós. Porque a vida continua e não pausa para ninguém.
É interessante observar que Bandersnatch não possui possibilidade de avançar ou retroagir na história, a não ser que o espectador chegue ao game over ou desista do jogo para apagar as escolhas desde o início. E o mais assustador disso tudo é que, diferente da vida, existe a opção de refazer. Ao longo de nossa existência, sempre há aquela pergunta do “e se?”. E se escolhêssemos outra coisa? A que ponto teríamos chegado? O que teria acontecido e deixado de acontecer?
Sendo tomado por toda essa tentação em testar possibilidades, Bandersnatch se torna um entretenimento sem fim, em que o jogador pode passar horas e dias reiniciando sem parar, tomado por uma angústia em testar e bolar teorias e destravar enigmas; destravar a verdade. É intrínseco no ser humano o desejo pela verdade. Nos acostumamos com linhas temporais bem definidas, independente se foi escolhida por nós, como em jogos de RPG, ou pelo escritor da obra.
A questão toda em Bandersnatch é quando entendemos que não existe linha temporal. Quando estamos para desvendar a verdade, a história que a Netflix quer contar, caímos mais uma vez “no buraco” e no looping infinito, quase presos e condenados à finalizar Bandersnatch. Da mesma maneira que aconteceu com o protagonista.
Nós somos Stefan. Nós caímos no buraco. Estamos tentando decifrar Bandersnatch. Nós queremos finalizar Bandersnatch. Por isso a angústia, a obstinação. Porque a Netflix nos mostra o falso controle. Faz com que o espectador confronte a si mesmo, aprenda a aceitar o destino e o que não tem como mudar. É nesse momento que nos tornamos a criatura que descobre a existência do criador.
Ainda na cena da libertação da verdade, Colin analisa o jogo Pacman, que significa “homem da Pac”. De acordo com o universo de Bandersnatch, um homem que foi pego pelas PAC’s. Pois em Pacman, a criaturinha amarela tem inúmeras possibilidades existenciais e está sendo controlada por algo e/ou alguém. No fim das contas, Pacman não tem escolha alguma, e muito menos o jogador. É o próprio jogo que conduz às possibilidades que o interessam. Quase como uma besta infernal.
Assim, chegamos outra vez à Louis Carroll e seu Bandersnatch, fazendo uma aparição simbólica. Com o nome de PAX, essa criatura carrega uma dualidade maniqueísta¹ dentro dela, tornando-se quase humana. PAX é a busca pela verdade, a aletheia, como diriam os filósofos gregos. No entanto, essa busca pode trazer infinitos resultados para o pesquisador; saber ou não saber a verdade é um caminho sem volta para o curioso que nunca vai aceitar aquela extraordinária citação de Sócrates:
“Só sei que nada sei. E o fato de saber isso me coloca em vantagem sobre aqueles que acham que sabem alguma coisa”.
Então, se podemos tirar alguma conclusão sobre as múltiplas realidades de Bandersnatch é que nunca descobriremos a verdadeira linha temporal. Pelo menos, não nesta existência. Ter esta noção (ou aceitação) já traz paz. Ou melhor, pax.
Se ainda resta alguma dúvida, leia na íntegra a entrevista que David Slade, diretor de Black Mirror e do spin-off Bandersnatch, tem a dizer sobre o assunto.
¹Maniqueísta: possui a dualidade entre bem e mal.
1 resposta »